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O Centro de Referência de Cultura Popular e o legado de Glorinha

Professora da UFSJ que coordenou o Museu de Vivências aposentou-se em agosto deste ano


Entre as ruas e narrativas, muitas vezes invisibilizadas, do Alto das Mercês, em São João del-Rei, pulsa a busca pela preservação de memórias coletivas e de uma identidade significativa para a cidade. Nesse cenário, surge um nome potente, de uma sensibilidade inigualável, que recorre à arte e à história na procura pelo fortalecimento da cultura afrodescendente do bairro: Glória Maria Ferreira Ribeiro - mais conhecida como Glorinha.


Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), Glorinha, vinda de solo carioca, chegou à cidade dos sinos há mais de 27 anos e, como a mesma afirma, “foi a melhor coisa que aconteceu” para ela. De início, foi lidando com os estudantes dentro da sala de aula, trabalhando assuntos referentes à área da fenomenologia e da cultura popular. Entretanto, sabia que havia muito mais para estudar para além daquele espaço e, assim, surgiu a ideia do Museu de Vivências.


O início do Centro de Referência de Cultura Popular Max Justo Guedes (CMAX)


“O Museu de Vivências começou em sala de aula”, conta Glorinha. Tentando encontrar formas de observar e estudar memórias vivas e pulsantes, que não retém apenas fatos, a professora deu início a criação da ação extensionista junto aos estudantes. O desenvolvimento do projeto tinha como base o interesse nas políticas de registro e tombo, e na cultura popular da região do Alto das Mercês, bem como nas narrativas de grupos socialmente marginalizados em São João del-Rei.


Assim, ao lado da turma, Glória delineou o início do que se tornaria o Centro de Referência de Cultura Popular Max Justo Guedes: “Propus aos meninos [estudantes] para que fizessem esse projeto pensando em como poderíamos ajudar esses grupos, de tal maneira que esse registro ganhasse uma outra dimensão”.


Ao mesmo tempo, a Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proex) abria um edital para a ocupação do Fortim dos Emboabas, um dos casarões mais antigos da cidade, doado para a UFSJ em 2009. Glorinha não pensou em outra coisa: resolveu submeter o projeto desenvolvido em sala de aula para o desenrolar das atividades no Fortim. A professora, ao acaso, encontrou Zandra Coelho, do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Artes Aplicadas, que também via o potencial gigantesco do espaço na promoção da valorização da arte, da cultura e das memórias coletivas.


Juntas, decidiram que o CMAX seria composto por dois núcleos de atividades, realizadas no casarão: o Museu do Barro, coordenado por Zandra, e o Museu de Vivências, organizado por Glória. O primeiro, trabalharia com o acervo de cerâmica indígena, popular e contemporânea colecionado pelo doador do imóvel, o Almirante Max Justo Guedes, que conta com mais de cem peças exclusivas. O segundo, realizaria atividades com as crianças do bairro, visando o incentivo à educação patrimonial, como explica Glorinha: “A ideia era dar apoio a esses grupos. Trabalhar com as crianças para que elas mantivessem essa tradição e trabalhar questões relativas à racismo e preconceitos. Meu foco era transformar essa cultura cada vez mais visível dentro da cidade, e, para isso, [trabalhar com] a criança, que é um vórtice de transformação”.


Zandra acrescenta que o trabalho de Glorinha com as crianças estimulava novas formas de se observar as vivências na comunidade: “A partir de 2012, a gente resolveu fazer juntas as atividades no Alto das Mercês [...] E a Glorinha, desde então, nunca mais abandonou as questões das crianças do bairro, com um olhar muito atento pra questão da educação e pras necessidades dessas crianças, que vivem sob situações de existência um tanto restritas, precárias por diversos motivos. É uma população muito excluída, muito segregada, com um histórico de exploração extrema”.


Com o passar do tempo, os trabalhos do CMAX atravessaram as ruas do bairro. As atividades se concentram, também, em escolas municipais e estaduais, abrindo espaço não somente para a extensão da Universidade dentro da comunidade, mas também para a manifestação de lideranças locais, criando um vínculo de afeto e respeito com as histórias do Alto das Mercês.


Produtos e reflexos


Em seus mais de dez anos de história, o Museu de Vivências produziu diversos materiais por orientação de Glorinha. Dentre eles, destaca-se um trabalho audiovisual que evidencia as relações, tensões e poéticas de uma comunidade que descende dos primeiros garimpeiros do ouro em São João del-Rei. “Memória e Esquecimento: o Alto das Mercês”, concebido por Glória e dirigido por Danilo Henrique e Lucas Bertolino, foi um dos projetos que realçou a potencialidade do CMAX.


Danilo, que foi bolsista do Museu de Vivências, conta que a ideia do documentário surgiu como uma forma de reverenciamento dos moradores do bairro e suas narrativas, já que seus relatos e contextos pouco são ressignificados na cidade. “A Glória sempre lembrava que não podíamos fazer muito para essas pessoas, porque não tínhamos grana, nem mesmo uma estrutura consolidada. [...] Então, ela falava ‘o que a gente pode fazer é dar voz à essa comunidade’ e por isso surgiu o documentário: dar voz aos moradores do Alto das Mercês”, complementa o diretor.




Exibição do “Memória e Esquecimento: o Alto das Mercês” com a comunidade do bairro / Fotos: Danilo Henrique


Glorinha estruturava e coordenava com maestria as atividades desempenhadas pelos bolsistas do Museu de Vivências. Além do documentário, outra realização de destaque do CMAX foi a produção de cartilhas, elaboradas para divulgação nas escolas que trabalhavam em conjunto com o projeto de extensão. Os materiais gráficos abordam as mais diversas questões que percorrem e rastreiam a construção do imaginário no Alto das Mercês, como racismo, sustentabilidade, religiosidades, patrimônio imaterial e muitas outras.


As cartilhas surgiram, então, como uma forma de registro e preservação das tradições da comunidade. “A Glorinha tinha essa preocupação de registrar a cultura do bairro, tinha muito interesse pelas lendas que eram dali. Por isso, as cartilhas eram uma forma de passar adiante essas histórias”, relata Lara Goulart, ex-bolsista do projeto de extensão.


Quanto à realização de outras atividades voltadas às crianças, o Museu desenvolve “oficinas que façam com que se sintam acolhidas, respeitadas e ouvidas, principalmente porque, muitas vezes, elas não têm esse espaço. [...] Além disso, damos liberdade para elas, porque não estamos ali para controlar os corpos, os corpos têm que ser livres”, ressalta a bolsista Mylla Couto, que retoma a importância da orientação de Glorinha nesse processo.


As relações e conexões estabelecidas: “gente é pra brilhar”


Todos estes anos de trabalho contínuo refletem na forma como Glorinha é evocada pela comunidade acadêmica. Como na música de Caetano Veloso, os estudantes lembram algo muito repetido pela professora em sala de aula: “gente é pra brilhar”. Dessa forma, Mylla diz que “não tem como pensar no Museu de Vivências sem falar dessa figura incrível que é a Glorinha”.


Para o cenário da Extensão na UFSJ, as visões da professora permanecem e alimentam novas formas de se pensar a relação desenvolvida pela Universidade com a comunidade, como pontua Danilo: “A Glória ensinou pra gente um modo de fazer extensão muito diferente do que a gente tinha visto até então”. Já Glorinha acredita que as ações extensionistas são capazes de incentivar o florescimento dos estudantes: “A Extensão abre isso pros ‘meninos’: eles conseguem perceber aquilo que eles podem e devem ser, e isso não tem preço”.


Entre risos e olhos marejados, seus “meninos” relembram dos anos de relação com gratidão. Lara Mendonça, ex-bolsista, afirma que “em nós, enquanto bolsistas e colaboradores, o que fica de aprendizado da Glorinha é o de acreditar em nós mesmos”.


Os colegas também guardam muito carinho pelos anos de convivência: “é um exemplo de humanidade, de uma pessoa comprometida, com valores éticos. Trabalhar com a Glorinha é poder aprender muito toda essa racionalidade e essa coerência ética de ver o papel da Universidade dentro da comunidade, de saber costurar questões muito delicadas dentro da comunidade”, complementa Zandra.



“Foram 27 anos de muita alegria. É claro que teve sofrimento e tristeza, mas o sofrimento e a tristeza compõem a felicidade, e foi isso que aconteceu. Eu sou muito grata aos estudantes, pessoas com as quais eu compartilhei a sala de aula. Uma dívida de gratidão imensa, porque eles foram realmente meus parceiros de estudos, de aprendizados e de descobertas.” - Glória Maria Ferreira Ribeiro.


O futuro do Museu de Vivências


Agora, com a aposentadoria de Glorinha, o professor do Departamento de Filosofia, Rogério Picoli, assume a coordenação do projeto. As atividades seguem voltadas à consolidação do escopo e das ideias que a professora deixou. Para isso, o foco do planejamento é retomar o trabalho com a edição do material previamente gravado, impulsionar as oficinas com as crianças - agora, na Escola Estadual Idalina Horta Galvão - e retomar as atividades no casarão, após reformas e reestruturação.


Por isso, Rogério afirma que “navegando pelo legado que a Glória nos deixa, a gente quer sensibilizar os alunos para a importância do território que eles habitam, o quanto de herança histórica e memória tem ali e o quanto a cultura afrodescendente desenha uma certa concepção de vida deles.”


“As expectativas são as melhores possíveis!”, celebra Glorinha. “O Rogério é um excelente profissional e uma pessoa extremamente sensível às questões sociais e culturais. Então, eu, que tenho muito carinho por esse projeto, deixo tranquilamente nas mãos dele, porque sei que vai ser a melhor coisa possível”.


Além disso, Zandra e Rogério aguardam aprovação do plano museológico desenvolvido para o CMAX. O texto contempla o planejamento para o funcionamento do museu, como a estruturação, manejo de acervo, área educativa, relação com a comunidade e financiamento, e segue as regências estabelecidas pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram).


Zandra, então, reitera saudosamente o legado que Glorinha deixa ao CMAX: “Ela permanece em toda uma herança que nos deixa de trabalho. O plano museológico tem a impressão digital dela, principalmente na forma como ele propõe se relacionar com a comunidade. Os mecanismos, a Glorinha vislumbrou e soube registar muito bem no nosso plano. Ela batalhou muito pela institucionalização do CMAX, deixando os parâmetros para a gente seguir com o trabalho.”


Sobre o Fortim dos Emboabas


O Fortim dos Emboabas é um casarão, localizado no Alto das Mercês, tombado na instância municipal e federal, dado o seu inestimável valor histórico. O imóvel era de propriedade do Almirante Max Justo Guedes, alto escalão da Marinha do Brasil e que faleceu em 2011. Ainda em vida, o Almirante doou a casa e todo seu acervo para a UFSJ em 2009.


Atualmente, o Fortim é sede do Centro de Referência de Cultura Popular Max Justo Guedes (CMAX), projeto de extensão da UFSJ que contempla o Museu de Vivências e o Museu do Barro. O casarão vai passar por um processo de restauração que está previsto para iniciar entre o final deste semestre e o início de 2024. O plano museológico do espaço foi desenvolvido este ano, como estabelecido pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), e será enviado para análise do Conselho Universitário (CONSU) da Universidade.


Fortim dos Emboabas / Reprodução: Fortim/UFSJ


Por Clarice Muscalu, bolsista do Comunica Extensão



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